CRÍTICAS

Por Emerson Dionísio – jornalista, historiador e crítico de arte

FÚLVIA GONÇALVES – SEMENTES – Entranhas da vida vegetal – técnica mista – 1985

A artista apresenta-nos um exemplo de uma série que explora campos aparentemente opostos, mas que preenchem a antiga premissa de que não há vida sem a morte. Os personagens de suas telas – figuras humanas a objetos tratados quase graficamente – ocupam cenários soturnos sempre parecendo incomunicáveis, submersos em amplas áreas de cor e simultaneamente submetidos a planos claustrofóbicos. Gonçalves explora esse espaço com uma maestria ímpar. Seu objetivo, antes de visar a redenção da semente ou sua simbologia, antecipa-nos o ambiente da vida: o lugar dos conflitos por natureza. Suas formas são carregadas de lirismo e, paradoxalmente, são críticas da existência. A artista nos dá uma excelente visão do mundo das tormentas sem abrir mão do equilíbrio. Talvez por isso a dor e a angústia do Ser fiquem tão terrivelmente agradáveis. E como é agradável portar-se diante das obras dessa artista que domina sua expressão a ponto de permitir-se uma estética cujas consequências é relaxar o observador e deixa-lo à vontade para perceber a obra em sua especificidade, tomando consciência das relações que com ela desenvolve. O domínio da artista sobre a matéria da obra responde, em grande parte, pelas sensações de agradabilidade e liberdade, permitidas ao observador, infrequentemente na arte contemporânea. Para SEMENTES de Fúlvia Gonçalves indicamos: Concerto para violoncelo em Mi Maior op 85 de Edward Elgar (1857-1934) especialmente 2º movimento – Lento – allegro molto

Por Emerson Dionísio – jornalista, historiador e crítico de arte

A arte aqui transita entre a possibilidade gráfica-narrativa do universo de Morandi e os efeitos das cores compactas do expressionismo. Fúlvia exercita essa manobra de modo a ressaltar as linhas mestras de sua delicada técnica, sem, contudo, perder-se na exaltação do modernismo. O estilo da narrativa não é neutro, nunca é. Suas personagens, histórias, locais e situações dramáticas não são executadas apenas em termos de conteúdo. Sua linguagem constrói alianças entre as fobias e a beleza. Em suas obras, as coisas se movem agilmente. O sentido das formas dissolve-se diante da tração das imagens. A dor individual se mistura numa espécie de mal estar da civilização, que a justifica ao espelhar essa dor no sofrimento de multidões ou no de todo dos artistas que de algum modo esconderam a dor de existir. Não há uma mente desintegrando-se mas uma desordem geral, sem um protagonista definido.

Por José Roberto Teixeira Leite – Escritor, Crítico de Arte, Historiador e Professor de História da Arte do Instituto de Artes da Unicamp

De há alguns anos acompanho, a intervalos, a carreira de Fúlvia Gonçalves, desde quando morava eu ainda no Rio de Janeiro, nela via um dos valores da moderna geração de artistas brasileiros.

Acostumei-me desde esse já recuado tempo a vê-la como a artista séria e indagadora que é, capaz de questionar seu meio expressivo, a pintura, e de extrair, de tal questionamento, resultados concretos perfeitamente lúcidos e coerentes.

Reencontrei-a recentemente em plena maturidade expressiva, senhora de seus recursos e sabendo articular uma linguagem própria, na qual se equilibram razão e emoção, intuição e regra.

Há, com efeito, no que Fúlvia realiza, a presença de uma personalidade ao mesmo tempo inteligente e sensível, para quem o ato de pintar não é prazer ou repulso, porém a duma procura da expressão certa, que brota do mais profundo do seu ser, alimentando-se de sua sensibilidade filtrada, depurada, corrigida pelo raciocínio.

Nela, no que faz, com efeito – e para citar o artista de sua preferência, quem sabe obcessão, Leonardo – pode-se mais uma vez constatar como pintura é cosa mentale, não o gesto hedonístico e descompromissado, mas a coerente nunca de anti-tradução, razão única de vida, dando carinho sem retorno para alguns poucos escolhidos.

Por Marcos Rizoli – Professor Doutor em Artes pela Universidade de Bologna – Itália e Curador independente – Campinas

“Mona Lisa, um novo questionamento” – Correior Popular, 3/04/1985

A Mona Lisa, pintura célebre ocidental, criada do Renascimento, por Leonardo da Vinci não está morta nas paredes do Louvre, em Paris, França.

Foi a herança dos tempos que transformou essa pintura no símbolo, mítico, fascinante. Dali, Walrhol, Fúlvia.

Mas, se a expressão do artista está além do suporte da obra, significa que a arte de Leonardo da Vinci continua vagando na consciência estética da contemporaneidade. Recusar o suporte tradicional é atitude da criação vanguardista. É o produto temporal. Tempos indefinidos de vivência e atualidade. Mona Lisa.

Foi a necessidade de inovação que provocou nos artistas uma busca de novas linguagens visuais. Christo, Fluxus, Barrio.

Rever Mona Lisa tem sido tarefa de inúmeros artistas: cultura, propaganda.

A pesquisa sobre a grande (ou pequena) criação de Leonardo da Vinci, agora, apresentada no Museu de Arte Contemporânea de

Campinas – MACC – é discutida dentro da linguagem de instalações conceituais.

“Não paga nada”, é função de guichê que nega a qualidade do fato artístico. Gratuidade. Que preço terá que pagar, Leonardo, na eternidade afora, pela criação de Mona Lsia?

Almeida Prado, Bernardo Caro (aqui travestidos) e Fúlvia Gonçalves encarnam os contornos de Mona Lisa. Quem é a Mona Lisa se lhe tiram a face expressão e alma?

No espelho surge o retalhamento da obra: a sucessão da face, do sorriso, das mãos. A agilidade mutante do tempo. Quem estabeleceu o futurismo? Balla, Duchamp, Carrà?

Na projeção da luz, a projeção planificada – deformadora – do mito. Qualquer rosto, Qualquer mito.

Quando visualizamos os penhascos. Face que ri solenemente. Corpo que dá as costas. Mona Lisa “alfinetada pelas costas”.

Oh! É o expectador que se arrepia diante da obra, da pintura.

As instalações de arte da série “Mona Lusa” são de autoria de Mona Gonçalves.

Por Paulo de Tarso Cheida Sans - Cadeira 14 da ACLA – Professor do Curso de Artes Visuais da PUC-Campinas, Mestre em Filosofia da Educação pela PUC-Campinas e Doutor em Artes pela Unicamp. Diretor Curador do Museu Olho Latino, Atibaia, SP.

A HUMANIZAÇÃO NAS GRAVURAS DE FÚLVIA GONÇALVES

Publicado na Revista da ACLA

Apresentar a artista Fúlvia Gonçalves em poucas palavras não é fácil, dado o virtuosismo de sua produção artística que vem de longa data. Mas é, com muita satisfação que faço uma breve apresentação sobre uma artista tão completa.

Comecei a ouvir falar mais da artista quando ela mudou-se para Campinas em 1976, vinculando-se como professora da Unicamp para iniciar o ateliê de gravura e artes plásticas.

Por alguns anos dessa sua nova atividade e com o meu início como docente em outra universidade da cidade, na Puc-Campinas, tivemos alunos em comum.

Alunos que cursavam Educação Artística na PUC-Campinas e que frequentavam o ateliê de gravura da Unicamp, sob a orientação da artista. Em nenhum momento ouvi algum desses alunos comentarem negativamente sobre a professora.

Com o passar do tempo e vendo como Fúlvia ativava a sua carreira como educadora, criou-se um respeito e consideração de minha parte por uma colega que manteve uma conduta artística digna e criativa ao longo de sua jornada profissional.

Na realidade o nosso contato pessoal nesses anos foi pouco. Por um lado, apreciei algumas de suas mostras e por outro acompanhei pela imprensa a sua participação artística. Enfim, algumas vezes participamos de exposições coletivas como expositores.

Contudo, em 2011, época em que visitava a artista para sua inclusão como membro da Academia Campineira de Letras e Artes e com a intenção de realizar uma mostra da artista como curador da Galeria de Arte “Thomaz Perina” da referida Instituição Cultural, pude apreciar várias de suas obras em seu ateliê. Foi nessa visita que pude contemplar as linogravuras da artista.

As 13 gravuras em linóleo compõem um momento muito especial em sua carreira. Fúlvia é reconhecida como uma importante artista plástica pela sua relevância de harmonizar em suas obras a composição em sintonia com as formas e cores. A sua objetividade e leveza e lidar com a linha trouxe uma conquista pictórica em sua

produção, cuja marca estilística se destaca. O outro aspecto de sua produção é o lado inovador, experimental, ao criar obras com colagens dando outra conotação criativa e expressiva, como fez em questionar visualmente as consequências da banalização da imagem de Gioconda. Encontrou a Monalisa, não no sentido de apreciação museológica, mas na mídia, na propaganda, nas páginas de vidros de conserva.

As qualidades plásticas da artista inerentes à pintura e ao desenho são transformadas em outras vertentes expressivas ao lidar com a gravura, com a sulcagem e com a articulação das peças e cores ao compor a sua obra gráfica. As gravuras mostram uma Fúlvia penetrante, atemporal, “rústica”, enfocando a essência do humano. Considerando a produção artística de Fúlvia, a gravura ocupa uma pequena parte, mas significativa, assim como suas pinturas, aquarelas, desenhos e montagens.

O interesse pela gravura fez a artista cursar as possibilidades técnicas dessa Arte como mestre Paulo Menten, em São Paulo, e fins da década de 60. Depois de algumas sessões, Fúlvia interrompeu o seu estudo no ateliê por causa de alergia aos produtos decorrentes do ácido e da tinta. Contudo não deixou de admirar e apreciar grandes gravadores como Dürer, Grassmann, Darel…

Com gravura em metal, criou a série “Coleópteros”, exposta na FUANRTE no Rio de Janeiro em 1978. Suas gravuras em ponta seca foram reforçadas com o uso da aquarela sobre o papel Coton, merecendo uma composição musical de Raul do Valle, inspirada nessa série.

Sua incursão pela gravura a fez abrir a primeira Oficina de Gravura do Instituto de Artes da Unicamp em 1977. Obteve premiação no concurso de Cartões de Natal Brasileiro em 1988 e participou da 19ª Mostra Latino Americana “Miniprint”, em Rosario, na Argentina, em 1994, com xilogravura.

As 13 gravuras em linóleo datam de 1978 e foram doadas pela artista ao Acervo do Museu Olho Latino. A artista entalhou e imprimiu as gravuras num único dia. A partir de uma matriz em linóleo, recortou

com tesoura as partes e fez variadas composições entre elas, imprimindo-as gerando as 13 obras oriundas de uma mesma matriz.

Compondo uma configuração com linhas brancas, a artista entrosa os seres humanos em agrupações: ora os rostos estão colocados em sequência na vertical, ora os seres estão lado a lado, sem contar a sintonia nas formas recortadas em que a figura acalento que acolhe os filhos em momentos preciosos de carinho e afeição.

As articulações das peças são agrupadas, reorganizadas e impressas alterando as cores, assim formando novas situações de relações entre os seres criados. A comunidade representada está atenta num sincronismo de que aludem à tristeza. Há nessa conjunção de formas e transmissão de uma espécie de cerimônia, algo que relaciona o “mito”, a “vida” e o sentimento de bondade e compreensão.

A humanidade proposta pela artista é um convite à reflexão sobre a importância da amizade, do respeito ao próximo e da confraternização cidadã entre seres. Suas figuras são religiosas, humanizantes, estão ligadas com as leis e a espiritualidade do universo.

Por Joaquim Brasil Fontes – Escritor – Professor Titular da Universidade Estadual de Campinas - UNICAMP

UM DIÁLOGO COM MORANDI

Ao lançar sobre o papel o contorno preciso de alguns objetos, FÚLVIA GONÇALVES, ao arranca, no mesmo gesto de sua utensilidade; e seus frascos, frutas e fruteiras, escapando à contingência de existir e à usura do tempo, apresentam-se diante de nós na pureza do ser. São formas arquetípicas, a ideia mesma de objetos e coisas. É por isso, talvez, que paira sobre estas imagens

uma espécie de nostalgia da linha e da cor liberadas da escravidão da representação.

Eis porque esta série de aquarelas nos evoca imediatamente Morandi, com o qual estão em relação de tenso diálogo.

Eis porque estes signos nos lembram imediatamente o fragmento de Parmênides citado por Simplíco.

“Só ainda o mito de uma via

Resta, que é; sobre esta indícios existem,

Bem muitos, de que ingênito sendo também perecível,

Pois é todo inteiro, inabalável, sem fim;

Nem mais era nem será, pois é agora tudo junto,

Uno, contínuo;

Pois que geração procuraria nele?

É esta via que as imagens de FÚLVIA GONÇALVES nos abre: o ser

Por Joaquim Brasil Fontes – Joaquim Brasil Fontes – Escritor – Professor Titular da Universidade Estadual de Campinas - UNICAMP

ILUSTRAÇÃO DE TREZE POESIAS DE MALLARMÉ

Fúlvia Gonçalves conquistou um lugar no panorama das Artes Plásticas Nacionais, graças à sua linguagem densa, a uma temática original e ao diálogo renovador que soube manter com clássicos e modernos, de Da Vinci a Morandi.

Neste trabalho, precisamos o encontro da artista plástica com uma poeta hermético, confrontada com treze traduções e Stéphane Mallarmé para o português, Fúlvia Gonçalves reinterpreta a palavra

na pauta do mistério, entregando-se às sonoridades do verso que, para além da palavra, reencarna-se em treze maravilhosas imagens.

Por Pedro Manuel Gismondi – Crítico de Arte, Historiador e Artista Plástico

FASE EMBRIONÁRIA

A textura enrugada dos espaços oníricos e da última morada foram substituídos por superfícies sempre mais lisas, até a do papel shoeller, dos mais recentes desenhos. O acrílico, em chapas angulosas ou redondas, de elemento de contraste transformou-se em fulcro de atenção, sublinhando e acentuando a superfície lisa, sugerindo uma direção unânime sem conflitos.

Nas pinturas presentes a figura humana ao lado de elementos orgânicos, a representação de uma e dos outros, em escala variada, os mesmos elementos focalizados de pontos diferentes transformam a humanidade em desfile mágico visto de um carrossel e de uma gangorra ao mesmo tempo. Não num quadro, mas a sequência de suas obras introduz tempo e movimento no fruidor. Este tempo, estes momentos são mágicos, porém, e nos afastam e enfim nas entranhas das personagens focalizadas, revivendo a cada instante as aventuras de Gúliver, nos transferindo dos gigantes para Lilipout.

A sala de anatomia ora nos mostra um olho enorme como um globo, ora uma barriga que envolve seu dono, mais adiante de um crânio cortado saem outros crânios e das secções praticadas nos seres, em lugar de sangue, parece um jogo de bonecas russas, brinquedo inesperado, nos salvando à beira do colapso. A repetição parece a coexistência geradora de repulsa e atração que marca e desgasta, mas, nos mantém vivos.

Vivos nos expandimos com os desenhos nas limpas, nas aguadas luminosas, onde grupos humanos redescobrem seu planeta em

caminhos ampliados pela dimensão cósmica dos astros que se elevam sobre o horizonte. Cabeças rodam como satélites em volta da busca de uma visão mais profunda dos comos que crescem.

Por Pedro Manuel Gismondi - Crítico de Arte, Historiador e Artista Plástico - Galeria Artes Plásticas E.A.P. – Ribeirão Preto – Setembro de 1967

FÚLVIA GONÇALVES é o resultado melhor e mais apurado da Escola de Artes Plásticas de Ribeirão Preto. Anos de estudos, de trabalho, frequentando os ateliês de Vaccarine, de Amêndola e de Berti, todos professores da Escola, apuraram sua visão e consolidaram sua técnica. Cores claras, filtrando luz e tons mais baixos funcionando como sombra, liberta da realidade exterior.

A estrutura, recorrendo à liberdade que o cubismo conquistou para os artistas do século XX, vibra nas pinturas, divide o espaço em amplos campos, entrosados pela cor, em sequencias de ritmos de várias velocidades.

Surge tem ética da lembrança justa posta, que brota do inconsciente. Visão de cidades colhidas nos passeios ocasionais, aspectos da repetição cotidiana fundem-se em cores e adquirem forma. Temos assim as paisagens vazias, as cidades ideais da saudade, da espera, do cotidiano, povoados pelos sonhos que as cores surgem. Essencialmente iguais na forma e no espírito, são ambientes internos e as naturezas mortas, construídos pela repetição dos ritmos e associação de elementos escolhidos pela força expressiva que adquire na composição. As diferenças da escola tornam monumentais as frutas, as janelas, as bandeiras e os outros elementos que aparecem, mantendo o sentido de espera marcado pela ausência humana.

Por Pedro Manuel Gismondi – jornalista, historiador e crítico de arte

Crítica retirada do livro “Críticas de artes sobre a obra de Fúlvia Gonçalves”

“Vida Oceânica” – Galeria Jardim Contemporâneo – Ribeirão Preto

30 de julho de 1982

Fúlvia sempre se preocupou com a figura humana, ela as apresenta em situações dramáticas e, pouco a pouco, vai descendo fundo em seu âmago. Há uma fase em que ela representa a pessoa vista de dentro, que pode até ser uma visão anatômica, mas é, antes de tudo, uma visão interior, numa posição mágica mesmo, imaginária, fantástica – são situações emocionais.

Em um período posterior ela volta a ver a figura por fora, mas sempre mantendo uma ligação, um elemento simbólico colocando em espaços metafóricos – que se transforma e, ao mesmo tempo, é equívoco. Existe um relacionamento fantástico de figuras solidárias entre si. Dado que é um assunto subjetivo, tem de fato importância na obra de Fúlvia, mas o que fica é a forma, através da qual chegamos ao conteúdo.

Na forma, o tratamento da cor é maduro, com soluções cromáticas peculiares. Isto quer dizer que os tons tem gama e tonalidades originais e bem relacionadas. Ao elemento plenos coloridos, cortados ou delimitados por traços bem harmonizados que fazem parte íntima da expressão, estabelecendo uma relação na composição que é tão importante e se entrosa perfeitamente com o assunto mágico, fantástico que prefere.

Daí a unidade de tema ou assunto, forma e conteúdo, pois a solidariedade humana ou a solidão que aparecem em seus quadros são um só tempo resultado da figuração e da estrutura formal.

No cenário da arte contemporânea, poderia se dizer que existem famílias de artistas. Mas da influência que Fúlvia possa ter sofrido de Wesley Duke Lee, a meu ver existe uma afinidade mais profunda que

está ao mesmo tempo no gosto, na necessidade expressiva da utilização da cor e do traço.

Existe uma aproximação da natureza como ela é percebida, interpretada, porém de uma maneira livre, utilizando as mensagens do subconsciente, redundando numa visão mágica. Fato é que acentuando pela interpretação da cor, o que a coloca na grande corrente expressionista, marcada pela representação visionária da realidade da qual participa, amplamente a imaginação e os “demônios” do interior. Ou seja, faz parte daquele grupo que reconstrói o mundo a partir de uma linguagem profundamente subjetiva que mais é conhecida pelo fruidor, mas se desvela.

Por Pedro Manuel Gismondi - Crítico de Arte, Historiador e Artista Plástico – SESC – SP - 1969

Deixa Fúlvia as naturezas mortas, os ambientes internos, os espaços urbanos, parte para o cosmos em volutas cromáticas de vibrações variadas. Vórtices, turbilhões e cirandas diferentes nos ritmos e nas cores dominam a superfície, salvo raras exceções o tema é a cor. Criadora de contos encantados Fúlvia a desdobra em espaços reais e imaginários. A natureza meiga da autora atinge assim com suas novelas coloridas, rica de episódios íntimos os limites do quadro, e os força, como se quisesse sair do terreno da pintura, para alcançar a objetiva realidade que nos envolve. Não procurem entretanto, o óbvio e o real nestes quadros, são um oferecimento de sonhos e de vida do mundo das cores.

Por Pedro Manuel Gismondi - Crítico de Arte, Historiador e Artista Plástico

O DIREITO DE TUDO OUSAR – Trechos do texto de Pedro Manuel para o catálogo da Mostra de Arte Ítalo Brasileira de Milão – “4 di Ribeirão Preto – Tradução do Catálogo em italiano, por Miguel Langone Jr, – 2000

Os artistas aqui reunidos cruzam seus caminhos e fizeram de Ribeirão Preto seu ponto de encontro. O céu, o clima, os homens, a tranquilidade da vida de interior, a possibilidade de concentrar-se no ato criativo, de um lado, e as correntes e as turbinas da vida, pouco a pouco lhes depositaram nas margens do pequeno, escuro, Ribeirão, conhecido pela qualidade do café, que as terras em torno produziam e prosperam, hoje, com a cultura e com a industrialização da cana-de-açúcar.

A riqueza da terra púrpura, como em outras épocas da terra gordurosa e negra de Bruxelas e de Milão, transformou esta cidade em um ativo centro comercial, e tornaram próspero o comércio da cidade agrícola, enquanto lentamente nessa se concentravam as mais variadas atividades.

A Escola de Artes Plásticas foi um centro de atração para estes artistas tanto estranhos à agricultura quanto conscientes da esfera na biosfera.

Informação e renovação chegam hoje aos cantos mais distantes do universo e as modalidades de expressão são consequências de uma escolha livre, de uma escolha que caracteriza toda a atividade do homem do século vinte, mas que surge no mundo da arte, e é a essência recôndita nas manifestações criadoras deste período. Esta escolha se baseia na conquista de Gauguin, que estabelece o direito de tudo ousar, precedendo-o sintetizando a nossa época.

Mas a coragem toma uma direção: aquela dos grandes centros, de países mais evoluídos, de constante renovação, servindo-se dos mais recentes recursos tecnológicos; deturpou e elegeu, como norma, a sua “abertura”. As incursões das expedições no mundo periférico foram rápidos encontros a fim de acolher material destinado a futura elaboração.

Os artistas que ora expõem suas obras, se atribuíram o direito de tudo ousar de modo diferente.

A primeira audácia é residir e criar em uma pequena cidade do interior, muito distante da terra natal, onde chegaram por diferentes caminhos; muito distante é criar, serenamente, desenvolvendo seu

ritmo genuinamente absoluto, respondendo tanto os amplos espaços vazios que podem contemplar, quanto ao turbilhão de novidades do delírio tecnológico; a terceira, apresentar seu trabalho em Milão. E a coragem não consiste na escolha da cidade, mas no fato de que a peculiaridade regional, o exótico e o pitoresco são postos de lado, para mostrar opções individuais, a força residindo na individualidade e não no exótico, não no extravagante e nem mesmo nas recentes invenções potencializadas de complicadas intuições tecnológicas: trata-se de quatro mundo intactos, cuja única correlação, umbigo comum, é Ribeirão Preto. A peregrinação que os trouxe ao mesmo lugar revela, de todo modo, um profundo inconformismo, que não recorre a extremos para encontrar sua expressão.

É apenas nestes amplos contornos que surgem as personalidades de Francisco Amêndola, Leonello Berto, Fúlvia Gonçalves e Bassano Vaccarini. Única constante, presente nos quatro, é a reunião de elementos discordantes ou heterogêneos tratados com técnicas diferentes.

Em Fúlvia Gonçalves, a figura humana, completa ou fraturada em vários órgãos, domina o cenário. A figura humana de elementos orgânicos, a representação e a exaltação de uma ou de outra em escalas diferentes, os mesmos elementos focalizados de diversos pontos de vista, transformam a humanidade em uma parada mágica vista de um carrossel e de uma gangorra ao mesmo tempo. Não um quadro, mas a sucessão de suas obras apresenta tempo e movimento. Este tempo e este movimento, porém, são mágicos e nos afastam e nos introduzem nas vísceras dos personagens focalizados, nos fazendo reviver a cada momento as aventuras de Gulliber, nos transportando de Brobdingnag a Lilliput.

A sala de anatomia ora nos mostra um olho enorme, como um globo, ora um ventre que envolve todo o organismo; mais adiante, de um crânio aberto saem outros crânios e das secções praticadas nos corpos, ao invés de sangue, aparecem bonecas russas, brinquedos, erguendo os ânimos à beira do colapso. A repetição sombreia a coexistência geradora da repulsão e atração, que marca e consome aos poucos, mas que mantém vivos.