A HUMANIZAÇÃO NAS GRAVURAS DE FÚLVIA GONÇALVES
Publicado na Revista da ACLA
Apresentar a artista Fúlvia Gonçalves em poucas palavras não é fácil, dado o virtuosismo de sua produção artística que vem de longa data. Mas é, com muita satisfação que faço uma breve apresentação sobre uma artista tão completa.
Comecei a ouvir falar mais da artista quando ela mudou-se para Campinas em 1976, vinculando-se como professora da Unicamp para iniciar o ateliê de gravura e artes plásticas.
Por alguns anos dessa sua nova atividade e com o meu início como docente em outra universidade da cidade, na Puc-Campinas, tivemos alunos em comum.
Alunos que cursavam Educação Artística na PUC-Campinas e que frequentavam o ateliê de gravura da Unicamp, sob a orientação da artista. Em nenhum momento ouvi algum desses alunos comentarem negativamente sobre a professora.
Com o passar do tempo e vendo como Fúlvia ativava a sua carreira como educadora, criou-se um respeito e consideração de minha parte por uma colega que manteve uma conduta artística digna e criativa ao longo de sua jornada profissional.
Na realidade o nosso contato pessoal nesses anos foi pouco. Por um lado, apreciei algumas de suas mostras e por outro acompanhei pela imprensa a sua participação artística. Enfim, algumas vezes participamos de exposições coletivas como expositores.
Contudo, em 2011, época em que visitava a artista para sua inclusão como membro da Academia Campineira de Letras e Artes e com a intenção de realizar uma mostra da artista como curador da Galeria de Arte “Thomaz Perina” da referida Instituição Cultural, pude apreciar várias de suas obras em seu ateliê. Foi nessa visita que pude contemplar as linogravuras da artista.
As 13 gravuras em linóleo compõem um momento muito especial em sua carreira. Fúlvia é reconhecida como uma importante artista plástica pela sua relevância de harmonizar em suas obras a composição em sintonia com as formas e cores. A sua objetividade e leveza e lidar com a linha trouxe uma conquista pictórica em sua
produção, cuja marca estilística se destaca. O outro aspecto de sua produção é o lado inovador, experimental, ao criar obras com colagens dando outra conotação criativa e expressiva, como fez em questionar visualmente as consequências da banalização da imagem de Gioconda. Encontrou a Monalisa, não no sentido de apreciação museológica, mas na mídia, na propaganda, nas páginas de vidros de conserva.
As qualidades plásticas da artista inerentes à pintura e ao desenho são transformadas em outras vertentes expressivas ao lidar com a gravura, com a sulcagem e com a articulação das peças e cores ao compor a sua obra gráfica. As gravuras mostram uma Fúlvia penetrante, atemporal, “rústica”, enfocando a essência do humano. Considerando a produção artística de Fúlvia, a gravura ocupa uma pequena parte, mas significativa, assim como suas pinturas, aquarelas, desenhos e montagens.
O interesse pela gravura fez a artista cursar as possibilidades técnicas dessa Arte como mestre Paulo Menten, em São Paulo, e fins da década de 60. Depois de algumas sessões, Fúlvia interrompeu o seu estudo no ateliê por causa de alergia aos produtos decorrentes do ácido e da tinta. Contudo não deixou de admirar e apreciar grandes gravadores como Dürer, Grassmann, Darel…
Com gravura em metal, criou a série “Coleópteros”, exposta na FUANRTE no Rio de Janeiro em 1978. Suas gravuras em ponta seca foram reforçadas com o uso da aquarela sobre o papel Coton, merecendo uma composição musical de Raul do Valle, inspirada nessa série.
Sua incursão pela gravura a fez abrir a primeira Oficina de Gravura do Instituto de Artes da Unicamp em 1977. Obteve premiação no concurso de Cartões de Natal Brasileiro em 1988 e participou da 19ª Mostra Latino Americana “Miniprint”, em Rosario, na Argentina, em 1994, com xilogravura.
As 13 gravuras em linóleo datam de 1978 e foram doadas pela artista ao Acervo do Museu Olho Latino. A artista entalhou e imprimiu as gravuras num único dia. A partir de uma matriz em linóleo, recortou
com tesoura as partes e fez variadas composições entre elas, imprimindo-as gerando as 13 obras oriundas de uma mesma matriz.
Compondo uma configuração com linhas brancas, a artista entrosa os seres humanos em agrupações: ora os rostos estão colocados em sequência na vertical, ora os seres estão lado a lado, sem contar a sintonia nas formas recortadas em que a figura acalento que acolhe os filhos em momentos preciosos de carinho e afeição.
As articulações das peças são agrupadas, reorganizadas e impressas alterando as cores, assim formando novas situações de relações entre os seres criados. A comunidade representada está atenta num sincronismo de que aludem à tristeza. Há nessa conjunção de formas e transmissão de uma espécie de cerimônia, algo que relaciona o “mito”, a “vida” e o sentimento de bondade e compreensão.
A humanidade proposta pela artista é um convite à reflexão sobre a importância da amizade, do respeito ao próximo e da confraternização cidadã entre seres. Suas figuras são religiosas, humanizantes, estão ligadas com as leis e a espiritualidade do universo.